Nosso texto de hoje é decorrente de uma situação que vivenciamos pessoalmente e decidimos vir aqui compartilhar com vocês.
Há algum tempo, estávamos em uma reunião na sede da empresa de um de nossos clientes discutindo sobre um caso que poderia vir a se tornar um processo judicial, em razão da complexidade. Após algum tempo, o empresário declarou: – nesse caso a compra foi realizada no CNPJ e por isso, pelo menos, não poderá ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor.
Será mesmo? Sempre que um cliente adquire um produto ou serviço com seu CNPJ, o entendimento é de que o Código do Consumidor não deve ser aplicado? E ao contrário, sempre quando um cliente adquire um produto ou serviço em seu CPF é obrigatória a aplicação do CDC, independente da sua destinação?
Calma, estamos aqui para te ajudar a entender melhor situações como essas!
A Constituição Federal de 1988 levou a defesa do consumidor ao patamar de direito e garantia fundamental (art. 5º, XXXII¹), exigindo que o legislador elaborasse legislação especial para regular a matéria. Deste modo, em 11 de setembro de 1990, passou a vigorar o Código de Defesa do Consumidor no Brasil², lei específica que dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências, determinando tratamento diferenciado em razão do reconhecimento de sua vulnerabilidade em face do fornecedor (art. 4º, I, CDC).
O art. 2º do CDC determina expressamente que “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”, seja tanto do ponto de vista prático, quanto econômico.
Assim sendo, entendemos como destinatário final a última pessoa na cadeia de consumo de um bem ou serviço: é aquele que adquire um determinado produto ou serviço e será o último a utilizá-lo, independentemente desse cliente ser uma pessoa física ou jurídica.
Portanto, o consumidor não utilizará os bens ou serviços adquiridos para aferir lucro, seja pela revenda ou pela utilização como insumo em alguma atividade comercial ou industrial.
De acordo com a letra da legislação, o CDC adota pela Teoria Finalista do conceito de consumidor, sendo restrita as pessoas (físicas ou jurídicas) que adquirem bens ou serviços para fins não profissionais.
Entretanto, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça vem relativizando esse entendimento, aplicado majoritariamente a Teoria Finalista Aprofundada ou Mitigada. De acordo com referida teoria, ocorre um abrandamento da concepção finalista de consumidor, adicionando ao destinatário final econômico a hipossuficiência, sendo levado em conta a destinação fática ou econômica do bem adquirido, e a vulnerabilidade do adquirente, o que gera a ampliação do conceito de “consumidor”.
Segundo referido entendimento jurisprudencial, microempresários individuais poderiam ser considerados consumidores quando verificada a hipossuficiência em relação ao fornecedor; ou até mesmo à pessoa jurídica de grande porte, desde que adquira produto ou serviço alheio ao seu âmbito de atuação.
Obviamente, como praticamente tudo no ramo jurídico, cada caso deve ser analisado de forma isolada e específica.
Nesse sentido, para fins de conhecimento, tem-se que o STJ possui firme o entendimento no sentido de que, por exemplo, no contrato de compra e venda de insumos agrícolas, o produtor rural não pode ser considerado destinatário final, razão pela qual, nesses casos, não incide o Código de Defesa do Consumidor. ³
Ainda, no mesmo sentido, em recente decisão, o mesmo Colegiado entendeu que a ação que discutia o direito de um grupo de investidores a receber dividendos correspondentes às suas ações preferenciais em uma instituição financeira de grande porte não poderia ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor. 4
De outro lado, o STJ tem entendimento no sentido de que o adquirente de unidade imobiliária, mesmo não sendo o destinatário final do bem, poderá encontrar abrigo na legislação consumerista com base na teoria finalista mitigada se tiver agido de boa-fé e não detiver conhecimentos de mercado imobiliário nem expertise em incorporação, construção e venda de imóveis, sendo evidente sua vulnerabilidade. 5
Em resumo, a questão da aquisição do produto/serviço ter sido realizada por cliente com CPF ou CNPJ, por si só, não é balizador para verificar a aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor. Os requisitos da destinação final, vulnerabilidade e hipossuficiência econômica devem sempre ser levados em conta para averiguação da sua aplicabilidade.
Agora, quais as vantagens de ser considerado um consumidor e ter a aplicação do CDC a favor? O Código de Defesa do Consumidor, considerando o princípio da hipossuficiência financeira, traz diversas vantagens quando aplicado aos casos em discussão, especialmente no que se refere ao ônus probatório.
O Art. 6º do CDC determina que: “São direitos básicos do consumidor: VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.”
Diferentemente disso, quando aplicado a Código Civil, o ônus probatório é tão somente daquele que alegar o fato, consoante Art. 373 do Código de Processo Civil: “O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.”
A linha entre a aplicação do não do CDC é muito tênue, sendo necessário mencionar e reiterar que é imprescindível o exame de cada caso e das suas particularidades, para que seja possível verificar se hábil a aplicação ou não da Lei Consumerista.